sábado, 15 de setembro de 2007

Carta ao pai

Ler o livro Carta ao Pai, de Franz Kafka nos dá uma outra dimensão à compreensão de sua obra e pensamento.
Neste livro a intimidade do autor parece se desnudar sem que isso ocorra de forma vulgar ou desnecessária.
Com precisão literária, digno de qualquer romance, Kafka escreve uma carta a seu pai, que na verdade nunca foi entregue, cuja narrativa seria um acerto de contas contra a tirania da figura paterna.
Não é difícil verificar a influência negativa e devastadora que o pai teve na vida deste escritor.

Tudo daquilo que Kafka considerava injusto e cruel, faziam parte do comportamento e atitudes de seu pai, e isso certamente teve impacto crucial sobre sua personalidade.
Interessante ver que, enquanto filho, Kafka observava aparentemente passivo mas com percepção aguçada as atitudes de seu pai, uma observação refinada e inteligente, mas de grande sofrimento.
Através das críticas avassaladoras ao que Kafka considera desmandos do pai, constrói uma articulação de pensamento crítico e pesado, digno de um gênio, mas com a mágoa sentida de um menino, muitas vezes igual ao de qualquer outra pessoa diante do amor não correspondido. Expoe uma ferida aberta de anos e anos de revolta e finaliza com a força da indignação.
Li O Processo antes de Carta ao Pai, hoje vejo todo o livro sob outro ângulo, nele percebo o quanto Kafka criticava quase a si mesmo, falando na verdade de uma auto recriminação diante da passividade frente a um oponente contra o qual não tinha força interna para lutar.

Penso que, de alguma forma, no livro O Processo, Kafka falava de um sentimento que quase nunca conseguimos escapar, a culpa, só ela tem força para nos tornar algoz de nós mesmos, a ponto de não questionarmos nossas penas, nossas punições.
Não é difícil perceber que todos estes ingredientes contidos no livro foram vividos na relação com um pai castrador que o impedia de se tornar um homem seguro para enfrentar a vida adulta (Kafka nunca conseguiu se casar).
É nítida a tristeza da falta de um referencial que ele pudesse considerar digno de ser imitado, com certeza o pai, amado e odiado ao mesmo tempo, não conseguiu ser uma referência masculina positiva.

A ambigüidade de sentimentos permeia toda a carta e vai se tornando quase um encontro com nossos próprios sentimentos diante do objeto amado quando não correspondido, a expectativa de algo que não foi como o esperado.
Enfim, Carta ao Pai é um acerto de contas histórico que nos faz retornar aos nosso acertos parentais e individuais, ao questionamento de nossas relações primitivas e atuais.

Com sua mágoa particular, Kafka nos faz refletir e entender um pouco mais sobre sua subjetividade e por conseqüência sua obra.
Em uma simples carta pessoal, sem nenhum intuito literário, consegue ser genial, imortal e sempre atual.
Um presente literário que enternece o coração, mas também inquieta.
Fácil de ler, difícil de esquecer.